Reportagem





Casais homossexuais aguardam julgamento no STJ que pode reconhecer seus direitos 

O GLOBO | O PAÍS
JUDICIÁRIO | SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

                                                                                                                   Dom, 27 de Fevereiro de 2011.

Ministros interromperam votação em 4 a 2 a favor da união estável homossexual

SÃO PAULO. Gyslaynne Palmerino, de 22 anos, começa dentro de duas semanas um processo de inseminação artificial. Ao lado da namorada, Suzana Adachi, de 34, com quem vive há quatro anos, ela pretende ter dois filhos.

O primeiro, se tudo der certo, chega até o fim do ano. Com R$ 15 mil separados para pagar as despesas, as duas vão recorrer ao banco de sêmen do Hospital Albert Einstein. O dinheiro também será usado para o tratamento numa clínica especializada. Com a aprovação dos pais e após muito planejamento com Suzana, Gyslaynne se diz pronta para a gravidez e a maternidade, mas não esconde a insegurança em relação ao que está por vir. A maior preocupação é com questões jurídicas que ainda não garantem direitos civis aos casais homoafetivos.

Depois de o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ter suspendido, na semana passada, o julgamento que pode conceder aos casais gays os mesmos direitos que hoje são naturalmente dados aos heterossexuais, elas estão, como outros casais, apreensivas com falta de previsão legal aos que estabeleceram uma relação estável com parceiros do mesmo sexo.

No julgamento do STJ, quatro ministros votaram a favor de conceder a casais homossexuais os mesmos efeitos legais garantidos a uniões heterossexuais. Dois foram contra. Assim, a decisão que pode abrir a jurisprudência em todo o país para tratar de uniões entre gays depende do ministro Raul Araújo, que pediu vista do processo. — Temos 34 direitos civis a menos que um casal heterossexual, mesmo que eles também não sejam casados no papel. Se ela precisar passar por uma cirurgia de urgência e só eu estiver no hospital, não posso autorizar. Será preciso ter alguém da família dela, embora eles nem estejam morando aqui — diz Suzana. ■

‘Fico com medo porque não temos amparo legal’

Casamento gay feito no Canadá não é reconhecido no país

SÃO PAULO. Para Gyslaynne e Suzana, uma eventual decisão favorável aos homossexuais no STJ pode eliminar o desgaste que elas já imaginam que terão quando a criança nascer. A forma como o bebê poderá ser registrado já povoa a imaginação das duas antes mesmo de um resultado positivo de gravidez. — Não gostaríamos de ter apenas a guarda compartilhada, e sim uma dupla maternidade. Se o STJ entender que somos um casal, que formamos família, esse tipo de preocupação deixa de existir — diz Gyslaynne, já pensando num jeito de convencer o cartório a pôr o sobrenome das duas no registro da criança:

— O sobrenome dela, Adachi, tem significado de luz em japonês. Vamos dizer que não é pelo sobrenome, mas por um desejo nosso de ter essa palavra no nome de nosso filho. Assim como elas, Ricardo Fernandes, de 29 anos, e Carlos Eduardo Nagliatti, de 36, também gostariam de ter mais segurança jurídica na relação deles. Após um ano vivendo em Toronto, no Canadá, onde chegaram a casar oficialmente, os dois lamentam que, no Brasil, a situação dos casais gays não seja preservada legalmente. O registro de matrimônio em outro país não é reconhecido aqui.

— A união estável já é assunto consumado em outros países, mas, no Brasil, parece que o preconceito é maior que o sentimento — desabafa Nagliatti. Juntos, eles compraram carro e fizeram investimentos. Fernandes não esconde a preocupação com o futuro. — Não temos qualquer amparo legal, por isso fico com medo. E confesso que tenho pouca esperança de que o STJ seja favorável aos gays — diz ele. (Flávio Freire) ■





“Quero ficar com barrigão, sentir enjoo, tudo isso”



Companheiras há quatro anos, as empresárias Gyslaynne Palmerino e Suzana Adachi lutam para ter uma filha juntas

Fernanda Nascimento

Há três anos as roupinhas do enxoval de Victoria Eduarda estão guardadas no armário no quarto preparado para ser seu. Ao lado do vestido rosa estampado com borboletas, a primeira peça comprada, um roupão de banho, traz seu nome bordado. Victoria Eduarda ainda não nasceu nem virá ao mundo nos próximos nove meses. O bebê ainda é um sonho de suas futuras mães, as empresárias Gyslaynne Palmerino e Suzana Adachi. Juntas há quatro anos, as companheiras lutam para ter Victoria do jeitinho que planejaram: os óvulos inseminados de Suzana gerados na barriga de Gyslaynne.

O médico do casal, Fernando Prado, espera desde o início do ano uma autorização do Conselho Federal de Medicina para realizar o procedimento, conhecido como troca de óvulos. Junto com a empresária, outras sete mulheres lutam pelo direito de gerar o filho da companheira nas mãos do especialista em reprodução humano.  “Quero que o primeiro filho seja biologicamente dela”, diz. “Se não conseguirmos autorização para a troca de óvulos, infelizmente teremos que desistir dessa ideia.”
As noivas, como elas se autodenominam no Facebook, estão entre os 60.000 brasileiros que declaram viver com um cônjuge do mesmo sexo, de acordo com dados do Censo 2010 divulgados nesta sexta-feira. “Lutamos para juntar dinheiro para o tratamento, que nem sempre dá certo na primeira vez. Lutamos para conseguir realizar o procedimento, que há meses não sabemos se será possível. Quando conseguirmos, teremos que lutar para registrar a criança. É uma luta que nunca vai terminar”, lamenta Gyslaynne.
Barrigão - No ano passado, Gyslaynne tentou engravidar por meio de uma inseminação artificial tradicional, mas perdeu o bebê nas primeiras semanas de gravidez. O processo, que custou cerca de 15.000 reais, terá que começar do zero. “É um processo muito penoso e dolorido, com injeções diárias e acompanhamento semanal. E as pessoas ainda têm coragem de dizer que não somos uma família”, diz. “Ninguém nunca vai ver um casal de lésbicas jogando uma criança na lata do lixo. Não temos um filho por acaso.” O casal pensou em adotar uma criança, só que o desejo por um filho biológico falou mais alto. “Quero ficar com barrigão, sentir enjoo, tudo isso”, sonha. 
A maternidade conjunta é apenas um dos sonhos do casal que ainda depende da justiça. As companheiras esperam por uma decisão que permita um casamento de papel passado. “Estamos esperando a lei ser adotada no Brasil para casar direitinho, como todo mundo casa”, diz Gyslaynne. Elas pensaram em fazer uma festa para comemorar uma possível decisão do Supremo Tribunal Federal, que na próxima quarta-feira julga uma ação que reconhece a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, mas resolveram esperar que a justiça permita um casamento oficial.

Grupo de apoio – Gyslaynne e Suzana não são o primeiro nem serão o último casal homossexual a lutar pelo direito de ter um filho. As duas se reúnem mensalmente com outras cinquenta pessoas que partilham das mesmas dificuldades ou querem dividir suas experiências. No grupo Pequena Sementeira, mães e pais homossexuais discutem assuntos como fertilização, adoção, amamentação e até adaptação das crianças à vida escolar.

Gyslaynne tinha 12 anos quando assumiu para a família sua opção sexual. Seu pai, que hoje apoia o relacionamento da filha, ficou quase um ano sem conversar com a empresária por desaprovar sua escolha. Aos 18 anos, ela largou tudo em Americana, cidade do interior de São Paulo onde morava, para viver com Suzana na capital do estado. “Não escondo nosso relacionamento de ninguém”, garante.

Por duas vezes, o casal foi discriminado, uma vez em um restaurante e outra em uma loja. Na primeira ocasião, o gerente de um estabelecimento não quis vender a promoção para casais em uma data comemorativa e pediu que as empresárias se beijassem para “provar que estavam juntas.” Gyslaynne ameaçou chamar a polícia e o funcionário voltou atrás. Em outra situação, o caso foi parar na justiça. As empresárias, ao tentar trocar uma televisão em uma loja, viraram motivo de chacota dos atendentes e decidiram abrir um processo contra o estabelecimento. 
As empresárias se orgulham em fazer parte da luta pelos direitos dos casais do mesmo sexo e pretendem batalhar até que a última diferença se esgote. "Muitas pessoas ainda acreditam que homossexuais são promíscuos e não podem formar uma família”, diz  Gyslaynne. “Não dá para ficar quieta e deixar outras pessoas passarem por isso.”


 

Dupla maternidade

Ciça Vallerio - O Estado de S.Paulo
Três histórias diferentes se unem num ponto central: a realização do sonho da maternidade. Em todas, as personagens enfrentaram preconceito, discriminação e desamparo judicial para se tornar mães e constituir uma família. Mas valeu a pena atravessar os obstáculos: hoje, esses casais de mulheres festejam em dose dupla o Dia das Mães, ao lado de seus desejados e planejados filhos. Todos nasceram a partir de reprodução assistida, método cada vez mais adotado nas uniões homoafetivas.
 
Em um apartamento na zona sul da cidade, as pesquisadoras I. e A. celebram a data, pela primeira vez, ao lado da pequena E., de 3 meses. Por terem recebido ameaça homofóbica no blog de autoria de ambas, o Minhas Duas Mamães, omitiram seus nomes. Elas vivem juntas há sete anos e meio e, como muitos casais de lésbicas, tiveram a ajuda de um doador de sêmen para curtir juntas as delícias de uma gestação.

"Decidimos que eu seria gestante primeiro por causa da minha idade", conta I., que é professora universitária, especialista em neurociência. "Como estou com 34 anos e minha companheira, 32, não queria adiar mais por saber que a fertilidade vai se reduzindo à medida que o tempo passa." Elas planejam outro filho para 2012 - e será a vez de A. engravidar. "Desde pequena, sou louca por criança. E queremos que nós duas tenhamos essa experiência", diz A., biomédica que atualmente se dedica ao doutorado.

Em uma casa no extremo oeste da capital, as representantes comerciais Adriana Tito Maciel, de 28 anos, e Munira Khalil El Ourra, de 29, vão fazer uma festa especial no Dia das Mães. Adriana estava com o barrigão de sete meses de um casal de gêmeos quando as duas entraram na Justiça para o reconhecimento de dupla maternidade. Foram cinco recursos negados. Os filhos Eduardo e Ana Luiza nasceram e a batalha judicial só foi vencida em 9 de janeiro deste ano, poucos meses antes de eles completarem dois anos, na sexta-feira retrasada. Na sentença do Tribunal de Justiça do Estado, entre outros trechos, está assegurado "o dever da não-discriminação e igualdade às várias formas de família e aos filhos que delas se originem".

"Espero que, com essa decisão, outras famílias formadas por mães e mães, e por pais e pais, possam ficar legalizadas também", ressalta Munira.
 

É o que mais desejam as consultoras de negócios Suzana Adachi, de 34 anos, e Gyslaynne Palmerino, de 22. Juntas há 4, se preparam para a maternidade. No apartamento em que moram, na região central, o quarto que atualmente funciona como escritório está reservado para o futuro rebento. Em junho de 2010, elas recorreram à inseminação artificial com o sêmen de um doador anônimo.

Gyslaynne, que sempre quis gerar uma criança, engravidou. Mas, oito semanas depois, perdeu o feto. Passada a fase de frustração, elas se preparam para novas tentativas. O método, porém, será outro: Recepção de Óvulos da Parceira (Ropa). "Queremos que o óvulo da Suzana seja fecundado pelo espermatozoide de um doador anônimo, e depois implantado no meu útero", explica. "Esse processo dará um filho biológico com genética da Suzana e com meu sangue."

Foi por meio da Ropa que Munira e Adriana se tornaram mães - o primeiro caso registrado no País, de acordo com o ginecologista e especialista em reprodução humana Fernando Prado Ferreira, médico que realizou o procedimento nas duas. Mais do que uma escolha, foi a única maneira encontrada para Adriana engravidar. Com uma endometriose severa, ela não tinha óvulos "bons". Por outro lado, Munira os tinha em profusão. Dessa forma, foram transferidos três óvulos de Munira no útero de Adriana. E dois deles implantaram, dando vida aos atuais filhos do casal.

Depois disso, choveram pedidos idênticos na clínica. Os custos do Ropa vão de R$ 10 mil a R$ 15 mil. Como não há definição na legislação sobre esse procedimento, todos os pedidos foram encaminhados ao Conselho Federal de Medicina para obtenção de um parecer ético.

Desde outubro de 2010, seis casais aguardam o parecer da entidade. Enquanto a pendência não for resolvida, Gyslaynne e Suzana, por exemplo, têm de esperar para se tornar mães.

A reprodução assistida tem sido cada vez mais procurada por casais de lésbicas que querem ter filhos. A morosidade do processo de adoção e a dificuldade de homossexuais em conseguir adotar tem levado muitas mulheres a recorrer à inseminação artificial. Além disso, a divulgação na mídia e em redes sociais, especialmente blogs dedicados à questão da maternidade, e o maior acesso ao método também impulsionaram o interesse.

Segundo o ginecologista Fernando Prado Ferreira, que faz parte da equipe do Centro de Reprodução Humana do Hospital Santa Joana, atualmente, 40% do total de atendimentos realizados em 2010 no local foi de cônjuges mulheres. Em 2008, esse porcentual era de 10% e, em 2005, de menos de 2%. "Como a decisão do CFM está parada, pedimos ajuda jurídica à especialista em direitos homoafetivos Maria Berenice Dias (leia mais à página 8) para nos certificarmos de que há realmente necessidade de uma autorização como essa", conta Ferreira.

Enquanto a burocracia emperra, uma rede de mães duplas trocam informações sobre a conquista da maternidade via reprodução assistida. As pesquisadoras I. e A., mães da bela e sorridente E., fazem sucesso com o blog Minhas Duas Mamães. "Tem um monte de meninas tentando engravidar. Várias delas não imaginavam que isso seria possível sem recorrer à adoção", diz A., autora da página virtual.

Troca de ideias. Elas contam que o blog foi criado para que conhecessem outras famílias com duas mães e que, assim, a filha soubesse que não é a única gerada numa relação homoparental. "Quando crescer, vai ser importante para ela saber que somos uma família normal, independentemente da orientação sexual", diz I.. De quebra, trocam experiências e informações com outras mulheres em situação semelhante.

Seguindo os mesmos passos, mas ainda sem filhos, Gyslaynne e Suzana lançaram o Maternidade Dupla. Ele surgiu inicialmente como um diário, para que o futuro filho pudesse acompanhar a gravidez das duas mães. Com o insucesso da tentativa de inseminação artificial, o blog virou outra fonte de informações variadas e já foi acessado por mais de 36 mil visitantes. É uma legião de casais de lésbicas que, com certeza, não estão nas estatísticas dos 60 mil cônjuges homossexuais apontados recentemente pelo Censo 2010. Muitas preferem a invisibilidade e a discrição para se proteger de agressões homofóbicas. Infelizmente, ainda há quem teime em não aceitar a diversidade humana.

Plantando a semente da tolerância
Jéssica e Carina Ramires são casadas por meio de um contrato de união estável feito em cartório, uma vez que não existe regulamentação legal entre casais homossexuais. Como Jéssica já tinha uma filha biológica de um relacionamento hétero e sua companheira, outra filha nascida de uma produção independente, as duas criaram um grupo para reunir famílias homoparentais para trocar experiências e dicas.

"Quando fomos morar todas juntas, tivemos dificuldades de adaptação", conta Jéssica. "Tínhamos dúvidas com questões práticas e, por mais que amigos heterossexuais tivessem boa vontade em ajudar, não viviam a mesma realidade." Daí surgiu o embrião do grupo que cresceu, se formalizou e ganhou o nome Projeto Pequena Sementeira. Reunir iguais foi a fórmula encontrada para lidar também com preconceito e colocar as crianças para conviver e perceber que não são as únicas com dois pais ou duas mães.
Entre as crianças estão as filhas de Jéssica e Carina, que hoje estão com 12 e 10 anos. O grupo que se encontra uma vez por mês, sempre num domingo à tarde, já chegou a reunir 30 adultos e 16 crianças. Mas falta divulgação para ampliar essa rede de apoio mútuo. Em cada reunião, são realizadas discussões de temas livres, além da participação de especialistas de várias áreas. O grupo agrega também casais sem filhos, mas que desejam se realizar na maternidade ou paternidade.

Interessados e interessadas em participar do Pequena Sementeira devem enviar e-mail para contato@ projetopequenasementeira.org.
Cinema e TV abordam o tema
As uniões homoafetivas são cada vez mais retratadas no cinema e na TV. Até o IBGE, pela primeira vez, apresentou no Censo 2010 a declaração de 60 mil cônjuges gays. O tema está inserido, ainda, em Amor e Revolução, nova novela do SBT: a atriz Luciana Vendramini interpreta uma lésbica. Nos breves lançamentos em DVD está o premiado Minhas Mães e Meu Pai - indicado a quatro Oscar este ano, entre os quais o de melhor atriz pela atuação de Annette Bening. Ela e Julianne Moore fazem o papel de um casal com dois filhos gerados por inseminação artificial. O filme tem direção de Lisa Cholodenko - ela própria casada com uma musicista. Ambas são mães de um garoto gerado a partir do sêmen de doador anônimo.

 


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